Vinte e três anos passados sobre o desaparecimento trágico de Ayrton Senna, aqui fica a singela homenagem do F1Flash.com, com a recuperação de um texto sobre o fim-de-semana dantesco vivido «in loco», na primeira pessoa, enquanto enviado-especial de «A Bola» ao G.P. de San Marino de 1994. Que serve também de homenagem à memória de Roland Ratzenberger, desaparecido na véspera. Já lá vão 23 anos e tudo continua tão claro como se tivesse acabado de acontecer...
«É inevitável… Quando ouço o nome Senna viajo imediatamente no tempo para 1 de Maio de 1994, o ponto mais fundo do fim-de-semana em que os deuses abateram toda a sua raiva sobre a F1. Tudo começara na 6.ª feira, com um acidente feio de Rubens Barrichello, com quem tinha grande afinidade por ter seguido a sua carreira na Fórmula Opel-Lotus (que corria juntamente com a F1) e pela ligação com Pedro Lamy. O susto foi enorme e lembro-me de Senna correr ao hospital do circuito para se inteirar do estado do seu benjamim.
No dia seguinte foi a tragédia da morte de Roland Ratzenberger que abanou todos quantos seguiam a F1. Recordo-me de Senna se meter no carro médico, com o seu amigo Syd Watkins, o médico da F1, e ir ao local do acidente perceber como tinha sido possível. Mais tarde, Watkins revelou que, nesse momento, pedira a Senna para parar de correr…
Ainda mal refeito de dois violentos dias, nada me preparava para a tragédia de 1 de Maio… Primeiro o acidente no arranque em que só por milagre Pedro Lamy não se magoou seriamente, ao abalroar o Benetton parado de JJ Lehto. Mas muitas peças tinham voado para a bancada, provocando diversos feridos… Retomada a corrida, Senna despista-se na temível Tamburello, tem de estar tudo bem, pensamos todos, já muitos ali bateram e safaram-se com maiores ou menores mazelas. Olhos colados nos ecrãs, o capacete amarelo move-se, há um breve momento de alegria, está tudo bem ele mexe-se!, seguido por uma queda abrupta nas profundezas da tragédia quando assistimos aos meios médicos envolvidos no seu socorro.
Aproveito para descer à «box» da Lotus para saber como está Lamy que me despacha rapidamente com um «eu estou bem, mas como está o Ayrton?». Não há respostas, parece grave, mas, bolas, o capacete mexeu-se ele há-de estar razoavelmente bem, talvez algumas fracturas… Na altura apenas os socorristas sabiam a verdade e os momentos de desespero por que passava o brasileiro, já inconsciente, já em coma, de onde não mais sairia.
Numa sala de imprensa com muitas centenas de jornalistas, o silêncio era sepulcral, havia quem não contivesse as lágrimas, era demais num só fim-de-semana. Porque a corrida prosseguira e ainda houvera mais quatro feridos nas «boxes», por uma roda que se saltara do Minardi de Alboreto. «Morte» foi palavra que só se começou a ouvir muito mais tarde, já a corrida estava a terminar. Os rumores foram-se avolumando, até à confirmação do «press officer» da FIA que varreu a sala de imprensa com uma violenta onda de choque. Não, o Ayrton não!...
Na altura senti-me totalmente vazio e exausto, totalmente desfeito por três dias de tragédia permanente… Lembro-me de ligar para Lisboa e pedir ao chefe de redacção d’ «A Bola», Santos Neves, que me dispensasse do trabalho, não estava em condições de escrever uma única linha. Mas os leitores não têm nada a ver com os estados de alma do jornalista e foi o que percebi quando, do outro lado, ouvi um seco (e sei que muito difícil de dizer!) «está bem, vê se te acalmas e depois tens duas páginas para escrever».
Às vezes, «enfiarmo-nos» num teclado serve quase de terapia, de exorcismo dos fantasmas que nos esmagam. E foi assim que apareceram os textos para as tais duas páginas (ainda das grandes…), as mais difíceis de toda a minha vida! Já passava da uma da manhã quando saí de Imola, um sentimento de tremendo vazio, as lágrimas a quererem saltar. Acabara de viver o maior pesadelo de sempre… E a Fórmula 1 acabara de perder milhões de adeptos. Ainda hoje há quem me diga que deixou de seguir a F1 no dia em que Senna morreu. Compreendo mas não aceito. Porque tenho a certeza de que o próprio Ayrton não o aprovaria!».
(texto já publicado na secção Histórias, integrado num conjunto de três memórias pessoais do contacto com Ayrton Senna)