Foram precisos 22 anos... O luto foi longo... Ao fim de 22 anos, pela primeira vez, realiza-se um Grande Prémio no dia 1 de Maio, aquele que ficou para sempre ligado ao trágico desaparecimento do mítico Ayrton Senna. Um fim-de-semana dantesco e que, perdoe-se-me a abordagem invulgar, vivi na primeira pessoa, com uma das experiências mais traumáticas da minha já longa carreira de jornalista...
Estava em Imola para fazer a cobertura de mais um Grande Prémio de Fórmula 1, como enviado-especial do jornal «A Bola», concentrado na luta que se desenhava entre Ayrton Senna (Williams/Renault) e Michael Schumacjer (Benetton/Ford), mas também nas prestações do nosso Pedro Lamy, na que deveria ser a sua primeira época completa com o Lotus/Mugen Honda.
Desde então que é inevitável… Quando ouço o nome Senna viajo imediatamente no tempo para 1 de Maio de 1994, o ponto mais fundo do fim-de-semana em que os deuses abateram toda a sua raiva sobre a F1. Tudo começara na 6.ª feira, com um acidente feio de Rubens Barrichello, com quem tinha grande afinidade por ter seguido a sua carreira na Fórmula Opel-Lotus (que corria juntamente com a F1) e pela ligação com Pedro Lamy. O susto foi enorme e lembro-me de Senna correr ao hospital do circuito para se inteirar do estado do seu benjamim.
No dia seguinte foi a tragédia da morte de Roland Ratzenberger que abanou todos quantos seguiam a F1. Recordo-me de Senna se meter no carro médico, com o seu amigo Syd Watkins, o médico da F1, e ir ao local do acidente perceber como tinha sido possível. Mais tarde, Watkins revelou que, nessa altura, pedira a Senna para parar de correr…
Ainda mal refeito de dois violentos dias, nada me preparava para a tragédia de 1 de Maio… Primeiro o acidente no arranque em que só por milagre Pedro Lamy não se magoou seriamente, ao abalroar o Benetton parado de JJ Lehto. Mas muitas peças tinham voado para a bancada, provocando diversos feridos… Retomada a corrida, Senna despista-se na temível Tamburello, tem de estar tudo bem, pensamos todos, já muitos ali bateram e safaram-se com maiores ou menores mazelas. Olhos colados nos ecrãs, o capacete amarelo move-se, há um breve momento de alegria, está tudo bem ele mexe-se!, seguido por uma queda abrupta nas profundezas da tragédia quando assistimos aos meios médicos envolvidos no seu socorro.
Aproveito para descer à «box» da Lotus para saber como está Lamy que me despacha rapidamente com um «eu estou bem, mas como está o Ayrton?». Não há respostas, parece grave, mas, bolas, o capacete mexeu-se ele há-de estar razoavelmente bem, talvez algumas fracturas… Na altura apenas os socorristas sabiam a verdade e os momentos de desespero por que passava o brasileiro, já inconsciente, já em coma, de onde não mais sairia.
Numa sala de imprensa com muitas centenas de jornalistas, o silêncio era sepulcral, havia quem não contivesse as lágrimas, era demais num só fim-de-semana. Porque a corrida prosseguira e ainda houvera mais quatro feridos nas «boxes», por uma roda que se saltara do Minardi de Alboreto. «Morte» foi palavra que só se começou a ouvir muito mais tarde, já a corrida estava a terminar. Os rumores foram-se avolumando, até à confirmação do «press officer» da FIA que varreu a sala de imprensa com uma violenta onda de choque. Não, o Ayrton não!...
Na altura senti-me totalmente vazio e exausto, totalmente desfeito por três dias de tragédia permanente… Lembro-me de ligar para Lisboa e pedir ao chefe de redacção d’ «A Bola», Santos Neves, que me dispensasse do trabalho, não estava em condições de escrever uma única linha. Mas os leitores não têm nada a ver com os estados de alma do jornalista e foi o que percebi quando, do outro lado, ouvi um seco (e sei que muito difícil de dizer!) «está bem, vê se te acalmas e depois tens duas páginas para escrever».
Às vezes, «enfiarmo-nos» num teclado serve quase de terapia, de exorcismo dos fantasmas que nos esmagam. E foi assim que apareceram os textos para as tais duas páginas (ainda das grandes…), as mais difíceis de toda a minha vida! Já passava da uma da manhã quando saí de Imola, um sentimento de tremendo vazio, as lágrimas a quererem saltar. Acabara de viver o maior pesadelo de sempre… E a Fórmula 1 acabara de perder milhões de adeptos.
Ainda hoje há quem me diga que deixou de seguir a F1 no dia em que Senna morreu. Compreendo mas não aceito. Porque tenho a certeza de que o próprio Ayrton não o aprovaria! E, mais friamente, que diabo, um luto de 22 anos já é longo que chegue e a memória do grande Senna nunca ninguém apagará. Porque não aproveitar os tempos excitantes que se vivem com as novas tecnologias, um pelotão que, apesar de dominado pelos Mercedes, nos proporciona lutas fenomenais e a possibilidade de voltar a assistir aos fins-de-semana de F1 em canal quase aberto para nos voltarmos a apaixonar pelo pináculo do desporto automóvel?!